segunda-feira, julho 16, 2007

Ó Senhores Cónios...Ó Senhores da Terra...

Cónios: de Conistorgis a Conimbriga

Dividem-se as opiniões quanto aos possíveis impactos da presença púnica no Sul da Península, na sequência da batalha de Alália (540 a.C.), em que os Gregos acabam vencidos pela aliança de Etruscos e Púnicos. Enquanto alguns autores admitem perturbações e alterações políticas locais, que explicariam a decadência da cultura tartéssia, outros há que apontam causas diferentes para esse ocaso (cf. Blázquez, 1997: 235-236).

No entanto, conhecendo-se as relações mercantis dos Tartessos antes desta data, nomeadamente as que tinham estabelecido com o Noroeste europeu, rico em estanho (Avieno, 1985: 20, v.114-115), e conhecendo-se também a exclusividade atlântica de Cartago depois de Alália, afastando todos os concorrentes mediterrâneos dessas paragens, poderemos encontrar aqui algumas das causas que teriam contribuído para o declínio da cultura do Baixo-Guadalquivir. Atentemos que os Massaliotas, se queriam, por esta época, chegar ao estanho das "ilhas Estrímnides", tinham de fazê-lo por rota terrestre, seguindo de Narbona, pelos vales do Aude e do Garona, até ao Golfo Cantábrico, porque lhes estava vedada a rota marítima do Atlântico (Ferreira, 1985: 46, n. 28).

Todavia estamos no campo de meras hipóteses e, quanto a certezas, temos o desaparecimento dos Tartessos das fontes escritas que historiam o período posterior aos finais do século VI a.C., embora, em relação aos tempos mais recuados, só existam fontes em segunda mão, já que pertencem a épocas muito mais tardias, como será o caso das obras de Estrabão (64/63 a.C.-23/24), Plínio (23-79), Pompónio Mela (séc. I), Ptolomeu (90-168) e Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.). Estrabão, por exemplo, utiliza fontes que parecem não recuar ao final do século II a.C., como Posidonio (c.135-c.50 a.C.), Políbio (c.200-c.120 a.C.) e Asclepíades de Mirlea (séc. I a.C.) (vd. Fernández Castro, 1997: 239-243).A região dos antigos Tartessos aparece agora ocupada pelos Turdetanos, com os Túrdulos acantonados imediatamente a norte. Ressalta a coincidência dos elementos consonânticos das raízes dos três etnónimos referidos — Tartessos, Turdetanos e Túrdulos —, que poderá ter tradução num possível parentesco entre estes três povos, o que aliás é confirmado por algumas fontes greco-romanas (Maia, 1985: 165-177, passim).

O novo quadro étnico, bem como a decadência do reino tartéssio, talvez correspondam à chegada de sangue novo a estas paragens, na sequência de movimentações a partir da Meseta, porventura relacionadas com a entrada, via Pirinéus, de outros povos celtas. Mas também poderá ser o resultado de alterações locais, face às profundas transformações ocorridas no final do século VI a.C., como sejam as que assentam no novo papel desempenhado pelos Púnicos em toda esta região, as que se relacionam com a quebra do intercâmbio mercantil proporcionado pelas cidades fenícias da costa libanesa, interrompido pelas acções militares dos Babilónicos, comércio que alimentava sobretudo Cádis, ligada aos fluxos da mercancia tartéssia e, por último, a passagem para os gregos de Massilia do controle dos importantes mercados do noroeste europeu, ricos produtores do sempre indispensável estanho.

Colocando as raízes tartéssias no hinterland andaluz, Turdetanos e Túrdulos continuam a ocupar o mesmo território, podendo, na realidade, ser os herdeiros dos primeiros, agora com nova roupagem etnonímica, em que o primeiro elemento traduzia as origens, enquanto o segundo bem poderia corresponder ao contributo dos povos com os quais se amalgamaram, o que se torna tanto mais plausível, quanto é certo encontrarmos nestes arrabaldes, a sul do Guadalquivir, os "[...] bastetanos, a los que también llaman bástulos" (Estrabón 3, 1, 7) [...] "pero estos bastetanos, de los que acabo de hablar, también pertenecen a Turdetania, y lo mismo aquellos bastetanos de allende el Anas y la mayoría de sus vecinos directos" (Estrabão, 3, 2, 1; apud Fernández Castro, 1997: 240).

Mas as imprecisões e confusões de Estrabão poderão ser mais aparentes do que reais, se considerarmos as dificuldades inerentes à estruturação de um discurso cristalino, capaz de transmitir as realidades extremamente confusas e complexas que resultavam do profundo caldeamento de povos verificado na região. Não esqueçamos que uma das fontes de Estrabão foi o filósofo Asclepíades de Mirlea, "un hombre culto que enseñaba gramática (es de suponer que griega) en el sur de la Península Ibérica" (Fernández Castro, 1997: 239).

Quando nos debruçamos sobre a complexa teia étnica do Sul da Península, não podemos deixar de evidenciar a similitude de comportamento lexical nas duplas Turdetanos/Túrdulos e Bastetanos/Bástulos, que o geógrafo grego apresenta umas vezes como vizinhos e, outras, como parte do mesmo todo. Se atentarmos nos sufixos –tan- e –ul-, presentes no segundo elemento destes etnónimos, e se os relacionarmos com algumas línguas celtas, descobrimos a lógica dos respectivos significados. Isto aconteceria se –tan- estivesse ligado à raiz celta dán "sobre, superior", donde provirão as vozes gaélicas do escocês dàn, do irlandês dána, e do irlandês antigo dáne, dána, significando "corajoso, forte, vigoroso", e se -ul- se identificasse com o gaélico ùr "recém-chegado, novo" (MacBain, 1982). A proliferação de oppida e turres em todo o território Turdetano e Túrdulo, tanto no Baixo como no Alto-Guadalquivir, com algumas cidades em posição de predominância em relação a outras, constituindo uma unidade política em torno de um líder, permite-nos deduzir a existência de certa insegurança, manifestada em diferentes períodos, entre os quais podemos incluir o que se inicia nos finais do século VI a.C. até ao desencadear da Primeira Guerra Púnica. A arqueologia mostrou, na sequência de trabalhos recentes, que estas fortificações se multiplicaram no início do século V a.C., enquanto, entre os finais do século IV e início do III, surgem novas turres, principalmente no Alto-Guadalquivir, no território ocupado pelos Túrdulos (Fernández Castro, 1997: 239-261, passim).

Para além da decadência e desaparecimento dos Tartessos, também os Cónios entram em declínio nos séculos V e IV a.C., situação que é acompanhada pela instalação de novos povos célticos no sul e pela chegada ao Alentejo e Algarve dos Túrdulos que, ultrapassando o Guadiana, ali construíram as urbes de que nos fala Estrabão (Alarcão, 1983: 17-18). "Serão datáveis deste momento algumas fundações túrdulas registadas em alguns topónimos característicos do Sul de Portugal com sufixo em ‑oba/uba, como Ossonoba (Faro), ‑ilis (Myrtyllis, Mértola), ‑cci (Tubucci, Herdade do Carvalhal?)" (Silva, 1990: 289).

As informações presentes em Estrabão, Pompónio Mela e C. Plínio (Silva, 1990: 290-291), e confirmadas pela arqueologia com o achado das tesserae hospitales no Castro da Senhora da Saúde, em Vila Nova de Gaia (Silva, 1984: 145), permitem-nos acompanhar a migração de Túrdulos e Célticos para Norte, acabando os primeiros por estanciar no Centro e Norte do actual território português e os segundos na Galiza. Se esta movimentação migratória incluiu Cónios, o que é perfeitamente possível, bem poderiam ter sido eles os fundadores de Conimbriga (Condeixa-a-Velha).

Estes Túrdulos, os Turduli Veteres de que nos falam P. Mela e Plínio, com comprovação epigráfica nas citadas tesserae hospitales (Silva, 1990: 290; Alarcão, 1983: 20), ocuparam a faixa litoral entre o Vouga e o Mondego, tudo indicando que, em época mais tardia, tenha havido nova deslocação destes povos, quedando-se, desta feita, a sul do Mondego, possivelmente em relação directa com as acções militares de Aníbal, em 221 e 220 a.C., que penetrou profundamente na meseta do Guadiana e na região do Tejo, onde infligiu uma derrota aos Carpetanos. Sairiam desta última deslocação os povoadores das cidades, cujos topónimos apresentam sufixos em ‑ippo/‑ipo. Estas terminações, bem como as referidas ‑oba/‑uba, poderão ser indo-europeias, se atentarmos no avéstico upa "no alto, em lugar elevado" (adv.), "elevado, alto" (adj.) (Peterson, 1995), que os antigos autores identificavam com os Turdulorum oppida.

Discute-se ainda hoje a origem étnica dos Conii ou Cynetes, os Kynesoi das fontes gregas, ou Cunei das fontes latinas, umas vezes ligados ao Mediterrâneo, com uma língua não indo-europeia (Alarcão, 1990: 396-397), outras vezes relacionados culturalmente com os Oestrymnides, logo considerados pré-celtas, de língua indo-europeia, e responsáveis pelo Bronze Final do Sudoeste (Silva, 1990: 264-266). A favor da tese indo-europeia podemos apontar Estrabão, quando afirma que "no país Celta, Conistorgis é a cidade mais conhecida" (III, 2, 2), e o próprio nome deste povo, que parece estar presente na fala gaélica coinne "assembleia, reunião", voz que faz o plural em ‑idhean (com manifesta aproximação a Cynetes). Também o segundo elemento da cividade de Conistorgis — pois em relação ao elemento ‑briga de Conimbriga não existem dúvidas — poderá relacionar-se com os falares indo-europeus, considerando a sua aparente semelhança com manifestações das línguas célticas, como veremos de seguida. Pessoalmente inclinamo-nos para uma aproximação semântica de -torgis com -briga, "lugar alto fortificado", considerando as diferentes vozes célticas para "colina, outeiro, castelo": gaélico escocês tòrr "colina, outeiro, castelo", irlandês tor "torre, castelo, cume", irlandês antigo tor, galês twr, córnico tur, bretão tour de *turi, todos da raiz indo-europeia *tver "defender, cercar, encerrar, rodear" (MacBain, 1982). A origem indo-europeia deste elemento confirma-se ainda na Geografia de Ptolomeu onde aparecem várias cidades da Germânia e da Etrúria com o sufixo ‑urgium e –urgi-, e próximo ou sobre o Danúbio, os oppida de Budorgis e Coridorgis. Confirmando o carácter indo-europeu destes topónimos terminados em ‑dorgis, ‑torgis, ‑durgis e ‑turgis, temos a voz sânscrita durga "passagem difícil, perigosa; fortaleza, cidadela, praça forte (Huet, 2006: 167).

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