sexta-feira, julho 27, 2007

Garbe: Roteiro pelas cidades, vilas e aldeias do Interior.Parte III

Machados das Várzeas de Pêra; imagens divulgadas por Estácio da Veiga.










Machado do Neolítico achado no Sítio de Benagaia.


















Menir de Benagaia, (com meio metro de altura) talhado em calcário. Bélito exposto no Museu Municipal de Arqueologia de Silves.










Arredores de Silves




Pêra




Cap. I
Da História antes da “História”



Tendo a freguesia de Pêra sido criada em 1683, não começa certamente aí a história do seu território, incluído que se encontra num contexto histórico-geográfico lato no que respeita à história da ocupação humana do Algarve e, de um modo particular, do concelho de Silves.

Falar do “princípio dos tempos” implica pois, obrigatoriamente, uma visão global e recuada da evolução humana em vários aspectos, embora os testemunhos referentes à ocupação do território correspondente à freguesia de Pêra constituam peças fundamentais para compreender um pouco das origens dessa mesma ocupação.



A divisão clássica do Algarve em Litoral, Barrocal e Serra, que corresponde a uma metodologia específica de enquadramento geográfico, pormenoriza de certo modo aquilo que a região constitui geograficamente: o limite sul do chamado Maciço Antigo e a Orla Sedimentar do Secundário, que se estende ao longo da costa meridional algarvia de um extremo ao outro, ou seja, de Monte Gordo / foz do Guadiana até Sagres.




Associado a esta situação, no que refere à paisagem do litoral sul algarvio, Pêra insere-se numa faixa costeira baixa e linear de características mediterrâneas associadas à sua posição atlântica. A conjugação destes factores fez do Algarve uma unidade geográfica de certo modo individualizada, extremada a ocidente e a sul pelo mar, a oriente pelo curso do rio Guadiana e a norte pela serra que actua como uma fronteira natural em relação ao restante território português.



Onde começa, então, esta “história”? Desconhecemos. A presença do homem no território do Algarve remonta à Pré-História, embora seja fruto de um ocupação tardia.

É ponto assente que a expansão humana para o território hoje português fez-se a partir do litoral para o interior, ao nível das bacias do Tejo e do Guadiana e ter-se-á efectuado há mais de 300 mil anos, no Paleolítico Inferior Médio, antes da última glaciação alpina Riss, que ocorreu há cerca de 200 mil anos.



Pertencem precisamente à zona da actual freguesia de Pêra alguns dos testemunhos mais antigos da presença humana no Barlavento algarvio e, concretamente, no território hoje correspondente ao concelho de Silves.

São ocupações a nível do litoral, com cerca de 300 mil anos, identificadas nas praias fósseis de Pêra, na zona do Morgado das Relvas e, ali perto, no sítio da Torre, que, com o retalho quaternário de Santo Estevão, constituem os vestígios mais remotos de actividade humana encontrados no concelho de Silves e que remontam ao Paleolítico Inferior Médio (c. de 700 a 300 mil anos), estádio ainda inicial da História da humanidade no qual se integram as primeiras ocupações do território algarvio, referentes a arqueosítios do litoral, como os de Vila do Bispo, aos quais se atribui uma época bem mais remota, cerca de 700-600 mil anos.

Na zona vizinha de Porches, concelho de Lagoa, a furna da Senhora da Rocha também poderá ter sido habitada por uma comunidade do Paleolítico, da qual foram encontrados diversos instrumentos de pedra.


Os vestígios das praias fósseis do Morgado das Relvas e da Torre referem-se a artefactos – raspadores e bifaces feitos a partir de seixos e lascas – de caçadores recolectores Homo-habilis, nómadas ou semi-nómadas, praticantes de uma economia depradadora, baseada na caça, na pesca e na colheita de vegetais.



Nessa época inter-glaciar, o homem já conhecia o fogo, que dominava desde há cerca de 500 a 600 mil anos, abrigava-se em cavernas e vagueava pelo território em busca de alimento. Esses Homo-habilis foram os primeiros a produzir instrumentos de pedra lascada e osso, tinham um modo de vida original onde já se inclui o bipedismo, família nuclear estável e alimentação omnívora oportunística. A dimensão populacional era, então, tão reduzida que ainda não se pode falar de grupos étnicos ou tribais, mas de bandos, que se distribuíam em bandos mínimos (com cerca de 25 indivíduos), grupos produtivos (150 a 200 indivíduos) e bandos máximos (até 1000 indivíduos).




O homem continuou a marcar a sua presença nas terras de Pêra durante o Paleolítico Superior, no fim da Idade da Pedra Lascada (desde há 35-30 mil anos até há 10 mil anos) e entrou na Idade da Pedra Polida, ou Neolítico (com início há cerca de 10 mil anos), dando continuidade à progressão dos seus antepassados pelas Areias de Pêra, onde foi identificada uma estação de ar livre atribuída a esse período.



Vestígios da mesma época pré-histórica foram igualmente descobertos em sítios como Benagaia, Areias da Boavista, Almas, Terras Velhas e ribeira de Alcantarilha. Destes locais, merece referência especial o povoado de Benagaia, porquanto representa uma das mais recentes descobertas neolíticas do Algarve, relacionada com a emergência do fenómeno megalítico, desde o V milénio a.C. Situado num planalto, em zona de areias plioplistocénicas, entre os sítios de Montes Raposos e Benagaia, no local foram identificados diversos artefactos de pedra, como percutores, mós, machados, cerâmica cozida e parte de um menir (com meio metro de altura) talhado em calcário, actualmente em exposição no Museu de Arqueologia de Silves. Trata-se de um monólito pouco comum quanto à forma e dimensão, embora se assemelhe a outros descobertos nas Areias das Almas e Caramujeira (concelho de Lagoa), que deverão pertencer à fase mais antiga da ocupação dos povoados que integravam.



A cerca de 1,5 quilómetros a sudoeste de Benagaia, no sítio das Areias, foi descoberto um areeiro com estruturas de combustão e materiais neolíticos. Ainda a cerca de um quilómetro a sul desse arqueosítio surgiram outros areeiros com vestígios de ocupação humana, artefactos paleolíticos ou epipaleolíticos e neolíticos.

Do período Calcolítico (IV a III milénio a.C.) foi identificada uma estação de ar livre perto de Pêra, no sítio das Areias da Boavista.

Referente ao Calcolítico, merece igualmente destaque o conjunto dos chamados Ídolos de Pêra, do III milénio a.C., composto por nove magníficos amuletos ou talismãs de calcário encontrados na área da freguesia e recolhidas por José Leite de Vasconcellos na segunda década do século XX. O conjunto, reidentificado por João Luís Cardoso e divulgado num estudo recentemente publicado, tinha sido oferecido a Vasconcellos pelo escritor e investigador silvense Pedro Paulo Mascarenhas Júdice e referido pelo mesmo Vasconcellos em textos de 1918 e 1927.

De origem desconhecida – oriundos de uma sepultura ou de uma necrópole? –, os pequenos ídolos rituais, com tamanhos que variam entre cerca de 3,5 cm e 10 cm, são peças de calcário, finamente polidas, com formas variadas que vão desde cilindros lisos a formas com marcas antropomórficas, designadamente pelo desenvolvimento das extremidades, corpos troncocónicos e “cabeças” achatadas, salientando-se uma peça que apresenta dois mamilos cónicos em relevo na face frontal.



Representando alguns destes ídolos peças únicas no contexto do território português, intimamente ligados à «superestrutura mágico-simbólica das populações do III milénio a.C. que ocupava as zonas litorais desde a região do estreito até à Estremadura portuguesa», são considerados exemplares raros e expressivos de artefactos rituais, mas que encontram analogias e paralelos noutros ídolos do Calcolítico, descobertos em Salir, Moncarrapacho, Castro Marim, Porto Torrão (Ferreira do Alentejo), Huelva, Sevilha, Granada e Los Millares (Almería), inserindo-se num processo de intercâmbio «movido por interesses comerciais, de troca de produtos ou das respectivas matérias primas».

Durante muitas décadas (desde 1933) os Ídolos de Calcário de Pêra estiveram no Museu Etnológico, embrulhados em papel de jornal, até que João Luís Cardoso, com o trabalho de investigação publicado em 2002 e a entrega das peças ao Museu Nacional de Arqueologia, “recuperou” de um modo notável a sua indiscutível importância no quadro do Calcolítico do sul peninsular.


Nessa época, os algarvios pré-históricos já davam abrigo aos mortos, veneravam divindades e erguiam-lhes monumentos megalíticos directamente associados às suas crenças, aos habitats e às actividades quotidianas ali desenvolvidas, aspectos bem marcantes das sociedades de agricultores e pastores que se fixaram nestas paragens, tanto no interior como nas zonas costeiras.



E porquê a atracção do homem por esta faixa litoral do Algarve? Naturalmente, porque aqui encontrou um vasto e acolhedor território, propício às suas culturas: terras férteis, consideráveis aquíferos e um número razoável de cursos de água, entre os quais o rio Arade e ribeiras como as de Pêra e Espiche. Estes aquíferos, o relevo não agressivo, predominantemente baixo, a diversidade de espécies de caça e a proximidade do mar, rico em pesca, foram factores que lhe permitiram encontrar pontos de fixação temporária ou prolongada, que favoreceram a sedentarização.



Por essas areias, o homem acampou, caçou, pescou e constituiu comunidades nos seus acampamentos, atribuídos ao V milénio a.C., que evidenciam práticas humanas situadas entre o Mesolítico e a Idade dos Metais, onde ficaram vestígios de estruturas de combustão e diverso material arqueológico.






Na época a que nos referimos, o homem colhia o que a natureza lhe dava, tanto no campo vegetal como animal; já semeava as terras, domesticava os animais e seleccionava a matéria prima para polir as suas ferramentas. Foram esses utensílios, artefactos de pedra polida, de xisto, fibrolite e diorite, como sachos, brunidores, enxós, machados, pedras de raio, formões de arado, que deixou em vários sítios da sua passagem, revelando economias agrícolas e produtoras de alimentos, como provam os instrumentos diversos de pedra descobertos em vários sítios da freguesia, com destaque para Várzeas de Pêra onde foi registado um dos maiores machados até hoje encontrado. Não muito longe, outras descobertas foram feitas em Fontes da Guia, Torrejão, Morgado das Fontes, Vale de Lousas, ribeira de Alcantarilha e outros locais do Barlavento algarvio como Algoz, Amorosa, Cortes, Cumeada, Lagoa, Loubite, Mato Serrão, grutas da Mexilhoeira da Carregação, Monte Boi, Monte Branco, Monte Roma, furnas da Orada, grutas do flanco esquerdo da ribeira de Odelouca, Rocha Branca, Messines, Senhora do Pilar, Zambujal, etc. São achados que denotam a dispersão das pequenas comunidades que se fixavam aqui e além e que, possivelmente, mantinham relações inter-grupos.




Entre cerca de 1.800 a 1.500 a.C., os homens que viviam neste território eram agricultores e pastores, embora a caça e a recolecção continuassem a ser importantes contributos na sua dieta alimentar, nomeadamente no que refere à apanha de marisco.



Já habitavam em núcleos populacionais, reduzidos e geralmente pobres, dispunham de poucos artefactos e praticavam uma economia mista entre a terra e o mar, balançada entre a actividade agro-pastorícia e a referida recolecção de marisco.



Após o último grande glaciar, Würm, há cerca de 20-18 mil anos, depois de algumas transgressões e regressões do mar e de um período de grande pluviosidade (cerca de 5.000 a.C.), o Algarve já tinha uma linha de costa e um clima muito semelhantes à actualidade.

A terra era a mesma, os mesmos terrenos arenosos, propícios a uma agricultura ligeira em terras leves e facilmente escaváveis.


Tratavam-se de comunidades familiares, pequenos grupos ou clãs de duas ou três famílias referentes a estruturas familiares marginais em relação a alguns centros urbanos que já existiam, geralmente ligados a produções agrícolas, pastorícias, ou à extracção de minério de cobre e fabrico de artefactos desse metal que tinha um grande valor comercial nessa altura.



Os homens dessa época viviam, de certo modo, da mesma forma que os nossos camponeses viveram até há bem pouco tempo, pescando, recolhendo bivalves e marisco, trabalhando na agricultura e na criação de gado, numa actividade primária e de subsistência que perdurou praticamente até aos nossos dias.








Cap.II

Da romanização ao obscurantismo medieval

Quando os romanos iniciaram a colonização do Algarve, entre 202 e 139 a.C., já no final da II Idade do Ferro, as populações que encontraram eram muito diferentes das que tinham existido na Idade do Bronze Final (séculos XII a VIII a.C.). As antigas sociedades agro-pastoris tinham desenvolvido a exploração mineira e o comércio, encetando amplos e continuados contactos com povos mais desenvolvidos, a nível técnico e cultural, que as influenciaram.

A zona de Pêra era, então, parte integrante das terras dos cónios, vizinhas dos cinetes, turdetanos, celtas e tartéssicos. O seu território estendia-se até ao Guadiana.


Em 202 a.C. já os romanos estavam no Alentejo e, rapidamente, chegariam ao Algarve.


Embora o território de Pêra esteja associado aos instrumentos de pedra lascada e polida, ao megalitismo do Neolítico e aos ídolos de calcário do Calcolítico, na actual área da freguesia não há vestígios de qualquer aglomerado populacional pré-romano.
No entanto, é possível considerar a hipotética existência de um primitivo povoado de Alcantarilha com origem numa discutível fortaleza no outeiro onde se desenvolveu aquela povoação, que consistiria num castro lusitano na transição do Neolítico para o Calcolítico.

Nessa zona os romanos conquistaram a fortaleza, por volta de 198 a.C., transformando-a numa base militar de ocupação, servida por um porto marítimo na foz da ribeira, também ele muito discutível, onde mais tarde viria a surgir Armação de Pêra. Se a existência dessa primeira fortaleza, ou castro lusitano de Alcantarilha, se situa somente no campo das hipóteses, porque dela não há (ainda) vestígios, pelos mesmos motivos e por falta de outros indícios convincentes também partilhamos da opinião de que é errado atribuir a origem de Pêra ou da própria fortaleza de Armação de Pêra a alguma presença cartaginesa.

A romanização desenvolveu-se um pouco por toda a área do actual concelho de Silves, onde os colonos romanos, além de se fixarem em aglomerados urbanos, amantes do campo e cultores da agricultura que eram, espalharam-se pelas colinas e ergueram luxuosas villae rurais nas terras baixas onde desenvolveram o cultivo dos cereais, da vinha, da oliveira, das árvores de fruto.

Deixaram vestígios da sua presença na zona de influência de Pêra, com destaque para os achados de S. Lourenço do Palmeiral e Terras Velhas, onde se encontraram fragmentos de mosaicos e terra sigilata que pressupõem a existência de uma villa.

Salienta-se ainda as necrópoles identificadas em Centieiras e no Morgado das Taipas, além de outros vestígios, designadamente em Alcantarilha, Serro da Lebre, Algoz, Areias, Poço dos Mouros, Torreão Velho e Amoreira. Os romanos implementaram as trocas comerciais, fomentaram a circulação da moeda, trouxeram o arado de madeira, as forjas, os lagares, os aquedutos, as estradas e as pontes. A eles ficou provavelmente a dever-se a primeira ponte que ligou as duas margens da ribeira de Alcantarilha. Além do desenvolvimento agrícola, investiram em indústrias como a salga de peixe, nomeadamente na costa de Pêra, onde, no século XIX, Estácio da Veiga poderá ter identificado «na sua límpida praia os celebres tanques romanos de salga de peixe».

De acordo com o investigador oitocentista, sob o areal da praia deveriam estar as ruínas de uma povoação romana.

Estácio da Veiga não as viu; porém, socorreu-se de testemunhos de terceiros que lhe falaram de «vestígios de grandes construcções, que o areal hoje encobre». Se esta informação, que até prova em contrário não ultrapassa o domínio da fantasia, fosse de algum modo comprovada, poderia identificar um primitivo aglomerado populacional romano ou pré-romano que constituiria o mais antigo núcleo urbano de Pêra, algures oculto sob o areal, que o terramoto de 1755 teria posto a descoberto quando o mar recuou para, depois, voltar a engoli-lo.

Inclinámo-nos contudo, especulando sobre a sua existência, para uma hipotética villa situada algures entre os estuários das ribeiras de Pêra / Alcantarilha e Espiche, ligada ao fabrico do garum ou conservas de peixe, destinadas ao consumo e à comercialização.

Em 1841, João Baptista da Silva Lopes, contemporâneo de Estácio da Veiga, confirma que em Pêra de Baixo (Armação de Pêra), «em algumas escavações que se tem feito na aldeia, que fica na mesma praia, encontrão-se tinas de alvenaria, e vestígios de outras, em que se fazia a salga do atum», mas nada diz acerca da pseudo-povoação.

Após a conquista definitiva da Península Ibérica, por Augusto, o império romano viveu um período de cerca de duzentos anos de paz que permitiu um grande desenvolvimento urbano e económico até meados do século II d.C., época em que começam as primeiras perturbações com o início das invasões bárbaras que, juntamente com guerras civis e levantamentos populares viriam a marcar os séculos seguintes que conduziram à queda do império.

Em 624, os visigodos ocupavam toda a Península, tendo o seu domínio perdurado até à invasão do Islão em 711.

Entre o fim do império romano e os primeiros séculos da Idade Média, nada se sabe acerca de Pêra, tanto no que respeita à existência do seu aglomerado como em relação ao topónimo. Para além destas sugestões, a verdade é que não se sabe quase nada acerca do passado medieval de Pêra, tanto em época árabe como no início do domínio cristão, a partir de meados do século XIII, integrado que passou a estar o seu território na freguesia de Alcantarilha até ao ano de 1683.

No entanto, é indiscutível a antiguidade da primitiva aldeia, cujas origens estão ligadas à pesca e às armações medievais da Pedra da Galé, de que se falará no capítulo seguinte.








Cap.III


Uma História de interrogações e o mapa de Álvaro Secco
Pouco se sabe acerca do passado medieval de Pêra. Aliás, poucas informações existem acerca da aldeia que integrou a paróquia de Alcantarilha até 1683, ano em que Pêra passou a ser cabeça de um território administrativo autónomo, separado da freguesia-mãe.O primitivo aglomerado de Pêra foi fundado em época incerta, provavelmente, por pescadores de Alcantarilha que, ao largo da praia, no sítio Pedra da Galé – topónimo ligado ao rochedo ali existente, que tinha a forma da proa de uma galé – montavam armações de atum e passaram a alternar as suas estadias nas frágeis cabanas à beira da areia com as habitações que acabaram por erguer num pequeno outeiro recuado para o interior, junto da estrada que ligava Alcantarilha a Albufeira. Aí começou a ser edificada uma pequena aldeia, num sítio mais seguro e mais longe dos olhares dos piratas que assaltavam as costas, queimavam as cabanas e, na ausência de riquezas, matavam os homens, violavam as mulheres e raptavam os filhos que vendiam como escravos. A aldeia passou a ser conhecida por Pêra, talvez por corrupção de Pedra, uma vez que teria sido construída pelos pescadores da Pedra da Galé.


Em que século começou, então, Pêra a desenvolver-se como aglomerado populacional? No século XIII, no XIV, no XV? Desconhece-se. O que se sabe, com toda a certeza, é que a aldeia já existia em meados do século XVI, pois está representada na mais antiga carta geográfica que abrange o território de Portugal e regiões limítrofes e que veio a lume em Veneza, em 1561, e, depois, em Antuérpia, em 1565, da qual foram feitas várias reproduções nos séculos XVII e XVIII. Trata-se do famoso mapa de Fernando Álvaro Secco, cartógrafo e geógrafo do século XVI, a quem também se atribui a autoria de uma carta de Portugal incluída num atlas anónimo datado de cerca de 1580.


No documento de 1561, Pêra já é uma aldeia de referência, tendo em conta as localidades que figuram no mapa e que, como limites, apresenta Albufeira a nascente, Alcantarilha a norte, Porches Velho e Porches Novo a oeste e o mar a sul. Crê-se que Álvaro Secco foi o primeiro cartógrafo a utilizar o levantamento geométrico, mas deve ter-se baseado em fontes cartográficas mais provetas e algumas delas com incorrecções, uma vez que Pêra aparece localizada na margem direita da ribeira, no lugar de Armação de Pêra, e Alcantarilha no lugar de Pêra, na margem esquerda. Curiosamente, também não vêm assinaladas no mapa localidades como Messines, Algoz, Paderne e Salir, entre outras que já existiam nessa época.Atendendo ao facto de que a referida carta deve ter sido reproduzida a partir de outras mais antigas, nomeadamente por indicar Ayamonte (Aiamõte, no documento) a tempos anteriores ao tratado de Alcanises (1279), admite-se a existência da localidade de Pêra em tempos mais recuados, pelo menos em finais do século XIII, embora o Livro do Almoxarifado de Silves (século XV), que regista as propriedades régias da cidade de Silves e seu termo, nada refira quanto a Pêra, como aliás também não o faz em relação a Alcantarilha. Antes da publicação do insigne mapa de Álvaro Secco, já o território de Pêra devia estar ligado a um ramo da família Toscano, de quem se conhece Pero de Almeida Toscano, de Silves, cavaleiro fidalgo da Casa Real, casado com Ginevra de Arrochela e falecido cerca de 1522, quando foi sepultado na sé de Silves. Um seu descendente, com o mesmo nome, falecido em 1674 e sepultado na mesma igreja, era proprietário em Pêra. A Pêra liga-se também a família dos Cabrais, de Belmonte, descendentes de Pedro Anes Cabral, porteiro e reposteiro-mor de D. Afonso III, em 1271, que terão vindo para o Algarve através do bastardo Fernão Cabral. Foram os Cabrais senhores do morgado das Relvas, em Pêra.


Mas que localidade era afinal esta, praticamente esquecida pela quase generalidade das fontes medievais e modernas, mas que teve direito a figurar no mais antigo mapa impresso em Portugal? Tratava-se, certamente, de um pequeno aglomerado que se desenvolveu estreitamente ligado a Alcantarilha, aldeia de raízes muçulmanas envolvida no comércio mediterrâneo e que muito cedo foi cabeça de freguesia. Talvez Pêra tivesse mesmo nascido junto a um poço situado à beira de um caminho, um poço de água boa e, ao mesmo tempo, maldita, em função da lenda a ele associada. O chamado “poço de Pêra” foi um marco referencial dos itinerários do Algarve ao longo dos séculos, como o prova Silva Lopes que, na sua Corografia do Reino do Algarve, de 1841, ao traçar o itinerário entre Faro e o Cabo de S. Vicente, indica o caminho por onde, depois de Albufeira, passando pela Orada e pelo poço do Pixorro, o viajante encontraria «a pouca distância o poço de Pera com tanque; aqui faz a estrada tres ramos, o da esquerda para Pera da Armação, o da direitta para Pera e Alcantarilha, o que toma quando a ribeira não dá váu, hindo á ponte, dando porêm, segue o do centro ás alturas de Porches».Um testemunho contemporâneo do mapa de Álvaro Secco já nos dá informações, curtas mas esclarecedoras, acerca de Pêra. Trata-se de uma carta de 1559, enviada pelo capitão Pedro da Silva, sargento-mor de Silves, à rainha de Portugal, D. Catarina, em que relata um desembarque de piratas turcos no Vale de Olival (Armação de Pêra) que saquearam a aldeia de Canelas e avançaram para Alcantarilha e Pêra, tendo a defesa destas povoações sido assegurada por alcantarilhenses e por gentes de Pêra, Canelas, Porches-o-Velho, Porches-o-Novo, Lagoa e Silves. Por esse documento sabe-se que, em meados do século XVI, Alcantarilha tinha cerca de duzentos vizinhos, Pêra tinha trinta e Canelas tinha vinte. Mesmo reduzida a escassas três dezenas de famílias, a aldeia de Pêra, com a sua bandeira, enfrentou os invasores turcos (calculados em cerca de um milhar, em treze galés), ajudando a impedir que os piratas devastassem principalmente a aldeia de Alcantarilha.


Fica evidente, pelo testemunho do sargento-mor de Silves, que em meados do século XVI os habitantes de Pêra – e de outros lugares localizados na costa – tinham uma vida difícil, sempre sujeitos aos ataques dos piratas mouros. E esse era, sem dúvida, um dos principais factores que condicionava o desenvolvimento de um pequeno lugarejo, pelo que se depreende das palavras do capitão Pedro da Silva, que temia o despovoamento do litoral, não só pela provável debandada dos habitantes de Alcantarilha, Pêra e Canelas, mas de toda a área em redor de Porches-o-Velho, com «muitos moradores que espalhados perto daly vyvem». O relato do sargento-mor é esclarecedor em relação ao sentimento generalizado daquelas gentes: desesperados, os habitantes do litoral do termo de Silves apelavam à rainha que lhes concedesse a construção de uma fortaleza que os protegesse; porém, advertia-os Pedro da Silva que D. Catarina só ordenaria a construção de uma fortaleza num «sytyo forte» e que tivesse água. Diziam as populações «que se mudarião eles suas casas onde Vosa Alteza lhes mandase fazer» a dita fortaleza.Tendo Alcantarilha ficado quase totalmente fortificada em 1573, a mando de D. Sebastião, e concretizando-se o pedido do sargento-mor em relação à construção da fortaleza de Nossa Senhora da Rocha, que já existia nas últimas décadas do século XVI, Pêra sentiu-se certamente mais segura e acabou por não se despovoar, aumentando inclusivamente o número de moradores entre 1559 e 1600, que passou de trinta para oitenta.

Era uma aldeia que, vivendo timidamente na sombra de Alcantarilha, nunca deixou de cultivar a sua individualidade, as suas diferença e identidade próprias, factores que ao longo dos tempos cultivaram rivalidades com a sede da freguesia-mãe. Em 1600, ao contrário de Pêra, «junto a este lugar, da parte do ocidente, esteve ua povoação chamada Canelas, e ora está desabitada», arrasada pelo corso marítimo.
Se D. Sebastião, na visita que efectuou ao Algarve em 1573, esteve em Alcantarilha para ver a conclusão das obras das muralhas, parece ter passado ao lado de Pêra, lugar que não mereceu qualquer referência por parte do cronista João Cascão, que acompanhou o rei. Também a Corografia do Reino do Algarve, de 1577, da autoria de Frei João de S. José, ignora Pêra, embora, no que respeita a Alcantarilha, fale dos seus «lugarinhos que não são longe dela» e refira que os vizinhos do seu termo eram «todos lavradores de boas terras e figueirais».

Já Henrique Fernandes Sarrão, na História do Reino do Algarve, de 1600 (um texto mais completo do que o de Frei João), diz que Pêra é um dos doze lugares da cidade de Silves e das Casas da Rainha e dedica-lhe um curto parágrafo, localizando-a espacialmente como lugar da freguesia de Alcantarilha, referindo a sua população de oitenta moradores e descrevendo a sua pequena economia, essencialmente rural.




















A Praia Grande e o cordão dunar

Outrora ignorada pela maioria dos turistas e veraneantes, a Praia Grandelocalmente conhecida por praia dos Medos – é hoje uma das praias mais frequentadas da região, integrando os principais roteiros turísticos.


Praticamente em estado selvagem, a Praia Grande é um autêntico paraíso natural do Algarve. Extensa, elegante e harmoniosa, com um vasto areal de cerca de três quilómetros de extensão, águas cálidas e límpidas, dunas douradas, cheias de cor e vida, num espaço onde impera a tranquilidade e o sossego, sem empreendimentos imobiliários ou pressões urbanísticas que a afectem ambientalmente, a Praia Grande destaca-se no meio dos muitos gigantes de betão da saturação turística que ao longo das últimas décadas descaracterizaram o litoral da região.

Perante o seu vasto areal contínuo, no coração de uma ampla baía constituída por um acidente geomorfológico notável que originou uma extensa praia de seis quilómetros, entre Armação de Pêra e a Galé, praticamente desprovida de rochas e só interrompida pelas fozes temporárias das ribeiras de Espiche e Pêra / Alcantarilha, a Praia Grande delimita toda a freguesia de Pêra, a Sul, com o Oceano Atlântico, pelo que faz todo o sentido dizer que Pêra é uma “varanda sobre o mar”.





Na linha litoral da freguesia de Pêra, a nascente, existe um dos mais importantes sítios ecológicos do Algarve: a Lagoa dos Salgados.
Trata-se de uma autêntica preciosidade natural, uma zona húmida composta principalmente por um ecossistema aquático de pouca profundidade, situado no fim de uma pequena bacia hidrográfica.
O sistema lacustre, alimentado por duas linhas de água doce, as ribeiras de Espiche e Vale Rabelho, e por águas residuais das descargas contínuas na ribeira de Espiche, está separado do mar, a sul, pelo cordão dunar que funciona como uma barreira arenosa natural, mas com ligações temporárias ao oceano, associadas aos períodos de chuva intensa. As dunas mais altas elevam-se até aos 18 metros acima do nível médio do mar, pelo que a lagoa só recebe água do oceano em situações excepcionais, nomeadamente em dias de temporal e grande ondulação.
A zona húmida da Lagoa dos Salgados e seus terrenos circundantes possuem uma rica e variada vegetação, típica dos espaços de água doce e salobra, com charcos temporários e zonas alagadas, onde se desenvolvem diversas espécies juncais como o junco-das-esteiras e o junco agudo, ciperácias como o junco-vulgar e o triângulo, além dos maciços de tabúa e caniço.
Sendo uma vegetação fundamental para a alimentação e refúgio da avifauna, além de desempenhar um papel primordial na capacidade depuradora da zona húmida, contribui para que este sítio constitua um importante habitat para uma grande diversidade de espécies de aves, que ali encontra abrigo e alimento. Tanto assim é que, neste santuário natural, foram inventariadas 20 espécies de aves aquáticas reprodutoras, 40 espécies com elevado valor conservadorista e mais de 150 espécies que procuram este local.
Entre as variedades, encontram-se algumas raridades, como o caimão, ou galinha-sultana, uma ave em perigo de extinção e com estatuto de protecção prioritário.
Residente dos Salgados, e actualmente em fase de recuperação populacional, o caimão tem a sua alimentação e reprodução inteiramente associadas aos juncos e caniços, pelo que esta reserva ecológica representa o terceiro sítio mais importante da sua ocorrência em Portugal.
Outra espécie rara, e ali residente, é o pernilongo, igualmente ameaçado e com elevado estatuto de protecção. Além destas duas importantes ocorrências, destacam-se outros casos singulares, de aves invernantes, como o colhereiro, perante a sua raridade em zonas alagadas do sul de Portugal; o corvo-marinho-de-faces-brancas, grande ave nadadora, comum no litoral português; o garajau, espécie protegida, que repousa e alimenta-se nas dunas.
Destaca-se ainda os numerosos flamingos e o pêrra (primeiro caso de nidificação desta espécie comprovado em Portugal), o trombeteiro, a garça vermelha, o alfaiate e o zarro (cujas nidificações são irregulares no território português).

Na linha costeira da freguesia, a poente, no troço terminal da Ribeira de Pêra-Alcantarilha, junto à foz, desenvolve-se outro ecossistema estuarino-lagunar, que constitui uma zona húmida de extensão considerável, onde a comunidade vegetal conjuga plantas de solos salinos húmidos e plantas psamófilas (adaptadas a solos arenosos). Apesar de muito degradada, devido à forte pressão humana exercida sobre este sistema, inclui habitats costeiros de conservação prioritária, que incluem lodaçais e areais a descoberto na maré baixa, juncais, prados salgados mediterrânicos e matos halófitos.
Em sapais baixos, médios e elevados, a vida florística desenvolve-se, registando a presença de plantas adaptadas a meios húmidos e com elevado teor de sais. Assim, ao longo da foz da ribeira e do sapal, uma rica e diversificada flora é composta, principalmente, pela armeria, cardo-rolador, cordeirinho-da-praia, couve-marinha, eruca-marítima, erva-prata, espinheiro, feno-das-praias, funcho-marítimo, gramata-branca, joina-das-praias, junco-das-esteiras, junco-agudo, lobularia, malmequer-das-praias, narciso-das-areias, perpé-tua-das-areias, salgadeira e silene.
O elemento faunístico é igualmente diversificado neste ecossistema, destacando-se a avifauna, com espécies residentes e migratórias, os mamíferos, os roedores e os répteis: abibe, alcatraz, alvéola-amarela, andorinha-das-rochas, andorinha-do-mar-anã, borrelho-grande-de-coleira, corvo-marinho, falcão-peregrino, frango-d’água, fuinha-dos-juncos, gaivina-preta, gaivina-de-bico-vermelho, gaivota-argêntea, gaivota-d’asa-escura, gaivota-do-delaware, garajau-comum, garça-branca, garça-cinzenta, maçarico-das-rochas, maçarico-galego, ostraceiro, perdiz-do-mar, perna-longa, perna-verde, perna-vermelha, petinha-d’água, pilrito-comum, rola-do-mar, tarambola-cinzenta, tartaranhão-azulado, tartaranhão-ruivo, coelho-bravo, lebre, ratazana, sapo, cobra-de-água-viperina e cobra-rateira.
Além das inúmeras aves que se alimentam nas zonas marginais do sapal, a montante encontra-se um habitat de características ribeirinhas, marcado pela presença de espécies como o guarda-rios, a galinha-d’água, o borrelho-de-coleira-interrompida, comum no litoral português, em estuários e águas salobras, o guincho, ave invernante, comum em zonas estuarinas, e a garça-real, também invernante na região mediterrânea.
E muito havia para dizer sobre esta magnifica localidade, cheia de mistérios e com uma cultura riquissima em todos os aspectos.
Deixo aqui um video desta zona para assim ilustrar melhor toda a sua beleza natural.

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